sexta-feira, 29 de novembro de 2013

PARA ONDE FORAM TODOS SE NÃO HÁ CÉU ALÉM DE MIM?







O estampido foi seco e súbito, apesar do repentino estrondo ecoar inominado pelas paredes molhadas de mim por um longo tempo (partes de quem fui escorrem aos poucos por estas paredes, até que a faxineira apague de vez minha presença, xingando-me o trabalho extra).
Alguém ao redor, possivelmente sobressaltado, deve tê-lo confundido com o barulho emitido de um cano de escape furado qualquer, muito embora fosse hoje domingo e lá embaixo não passasse nenhum veículo, somente poucas e insistentes pessoas que se dirigem às suas missas, grávidas de rezas e promessas.
Depois de uma hora e um quarto dela, quando não mais existir, retornarão aliviadas, preparadas e prontas para os inevitáveis pecados da próxima semana. Portanto, o mundo indiferente não presencia meu derradeiro ato, momento em que senhor e soberano do meu anônimo fim, pelo menos uma vez, recuso o presente e encerro o futuro que agora não me é mais nenhum susto.
A vizinha ao lado cantarola uma canção desconhecida, enquanto estende lençóis nos varais. Ela não me ouve, não porque seja surda, porque nunca me ouviu, contudo agora a ouço cantarolar alegre sua canção, até que suma após o zumbido. Não sou quem morro em um tiro, é minha consciência que se livra de mim e, desaparecido dos relógios e de seus imperativos, desaposso-me do corpo como quem rasga do caderno uma folha de papel usada com seus borrões ilegíveis. Se ali estivesse escrito um poema inacabado, seria eu um amontoado de versos inéditos, cujo destino consumiria-se a uma lata de lixo mais próxima.
Consola-me pensar que os papéis são recicláveis e um dia retornarão em novos cadernos ou livros, ou ainda em bonitos embrulhos de presentes de Natal. Onde está o anjo negro da morte a gelar-me a face, retirando-me a vida com seu beijo misericordioso de despedida? Sempre escutei falar, e carregava em meus mais terríveis pesadelos, que morrer era encobrir-se de negrumes e silêncios, todavia há mais brilho e som do que antes já vira ou escutara.
Enganaram-se os mais velhos da minha infância: não há ninguém a me dar boas-vindas, a morte é um deserto de céus e infernos, uma incomedida ausência de arcanjos. Não reencontro meus perdidos, porém as lembranças que herdei. Flutuo incorpóreo por entre recordações recentes e antigas, a tal velocidade e rapidez que me é impossível distinguir quando as repasso em mim; é como se a cada instante o outro instante fosse o mesmo instante deste instante.
Devolvo-me a minha história, não mais como um passado mas como um contínuo e infindo presente que jamais se encerra. Inexiste alma, agora bem sei, e é uma pena pois sem ela não posso ir a lugar algum. Libertei-me do tempo e de suas fronteiras para aprisionar-me na imortalidade das memórias, fixando-me em mim feito um pião a rodopiar sem vertigem em torno de seu próprio eixo. Assisto sem emoções as minhas outroras emoções. Acaso antes soubesse que os mortos não encontram a morte e sua curva foice, mas os mortos que já trazem dentro de si, não teria me matado tão cedo, pois ainda me somariam os sonhos - essência dos vivos.

Como só relembro o que presenciei, assim também meus pais nunca me verão neles adulto, sou uma criança morta que não pode crescer. Impacienta-me o tédio de me repetir, de me repetir, de me repetir, já sei quem sou e o que continuarei a ser, já não sou um projeto nem alternâncias, sou somente constâncias. Enfado-me, não me basto.


Gostaria de ter um segundo, apenas um breve segundo, para poder me matar, pois morto, matando-me, poderia nascer de novo para o novo. Perdi tantas missas que já não sei orar pra Deus para suplicar-lhe o meu breve segundo, mas, talvez Deus não seja como minha vizinha, e um dia me ouça. Alguém tem que me ouvir, alguém está me ouvindo? Para onde foram todos? Aonde está o mar para que eu possa enviar mensagens em garrafas? Nem sequer tenho mais papéis, quem mandou jogá-los fora? Não sou um náufrago em uma ilha, eu sou a própria ilha cercada de mim por todos os lados. Dêm-me uma caneta e uma folha em branco e escreverei inutilmente: aqui jaz um morto que não se mata, simplesmente vive a interminável eternidade do desejo...

Joaquim Cesário de Mello


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A MEDIDA DE TODAS AS COISAS






Protágoras foi um grego sofista que viveu entre 480 e 410 a.C.  Talvez sua mais célebre frase tenha sido exatamente esta: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são." Todavia, não pretendo entrar aqui hoje com divagações filosóficas sobre o relativismo dentro da visão dos sofistas. Meu intuito é mais modesto, e explico logo.

                Quero falar um pouco sobre a maturidade da mente. Embora amadurecer, em termos psicológicos, pra mim, deva sempre ser um verbo a ser conjugado no gerúndio, a passagem de uma mente puramente infantil para um mente adultificada é uma longa jornada. Alguns, inclusive, nunca chegam até lá.
De início somos ilusoriamente grandiosos, onipotentes, completos e perfeitos. Ledo engano da alma humana em seu estágio mais primitivo e infantil. Embora não fale, pois no início não era o verbo, o psiquismo se sente. E se sente, por imaturidade absoluta, como se ele mesmo fosse tudo, afinal o mundo externo ainda não existe no campo perceptivo da mente humana. Através das experiências e das vivências o Princípio de Realidade vai se impondo mente adentro. Podemos dizer que a o psiquismo vai sendo invadindo pelo mundo, diferenciando, assim, o interno do externo. 

    O amadurecimento biológico antecede ao amadurecimento psicológico. Somos, por exemplo, capazes de procriar a partir e depois da puberdade, porém isso não quer significar que estamos psicologicamente preparados para sermos pais. O maturar do corpo nos leva a nos tornarmos um organismo reprodutivo. Geralmente estamos totalmente crescidos em torno dos 20 anos de idade (os músculos ainda se desenvolvem por mais 10 anos aproximadamente) e assim continuamos até chegar entre os 40/50 anos, quando alguns sistemas fisiológicos dão mostras de envelhecimento.  Os sinais do envelhecimento já aparecem na virada dos 30, tal como o leve enrugar da pele e alguns esparsos fios de cabelos brancos ou pequenas cavidades capilares. Os lábios, o nariz, os olhos, a tez e a face começam a nos denunciar. Contudo, psicologicamente a coisa é diferente. 
Quando somos crianças os corredores da nossa casa parecem enormes, assim como os quintais e a própria casa. Nosso sistema perceptivo-motor interpreta as impressões sensoriais em dimensões vistas pelo olhar infante. Internamente, isto é, em nosso sistema psíquico em geral, ainda maiores: somos originariamente narcísicos, ao menos imaginária e fantasiosamente. Neste sentido, crescer é diminuir. Diminuir o narcisismo, o egoísmo, o egocentrismo, a onipotência e a perfectude. Se quando crescemos nossa casa diminui e  mundo aumenta, nosso psiquismo vai gradualmente reconhecendo seu real valor, significado e tamanho. Não somos tão grandiosos e importantes como “pensávamos” que éramos. Não somos o centro do mundo e do universo. Somos periferia. Somos apenas uma areiazinha a mais em uma imensidão incomensurável de praia. As estrelas, o sol, a lua, as nuvens, as constelações, os astros e o próprio universo não tão nem aí pra gente. Somos diminutos, quase invisíveis. 
O neurologista e biólogo Oliver Sacks ensina que “maturidade não é quando começamos a falar coisas GRANDES, mas quando começamos a entender as coisas PEQUENAS”. Sim, agora começo a começar saber que são nas pequenas coisas onde posso encontrar a minha mais madura maturidade. E, talvez, também possa hoje melhor compreender o poema ASTRÔNOMO INSTRUÍDO, de Walt Whitman (o grande poeta americano do século XIX), que abaixo transcrevo:
 "Quando ouvi o astrônomo instruído,
Quando as provas, as cifras, foram postas em colunas bem diante de mim,
E me foram exibidos gráficos e diagramas, para somar, dividir, mensurar tudo aquilo;
Quando eu ouvi o que dizia o astrônomo, de onde falava, sob muitos aplausos na sala de conferência;
Sem que eu saiba como ou o porquê, vi-me de súbito cansado e saturado,
Até elevar-me e deslizar plainante, abismando-me em mim mesmo,
Na brisa da noite úmida e mística, de quando em quando
Levantando os olhos em perfeito silêncio às estrelas."

Joaquim Cesário de Mello

NERVURAS BERGMANIANAS


          








Recentemente estava eu de “bobeira” em certo espaço de tempo em um determinado dia qualquer. Que fiz? Fui ao Youtube e acessei a um velho filme que havia assistido nos longínquos meados dos anos 70. Trata-se de Face a Face, do cineasta sueco Ingmar Bergman. O enredo conta a história de uma psiquiatra, Dra. Jenny,  bem sucedida profissionalmente e casada com outro psiquiatra. Todavia ela é acometida de um colapso nervoso e sucumbe psicologicamente frente a fantasmas e emoções de seu passado que voltam dolorosamente a lhe assombrar. Embora não seja uma de suas obras mais arrebatadoras, Face a Face tem seus méritos e é um puro ouro bergmaniano. Lá estão todos os elementos das sombrias tensões que marcam o texto de Bergman, e como sempre ele nos revela o quão analfabetos emocionais somos. Vejamos, por exemplo, este seguinte trecho que a personagem fala a seu amante; algo muito estranho aconteceu comigo. Quando vim buscar Maria (uma paciente sua) havia dois homens na casa. Um deles tentou me violentar. No início quis gritar, então pensei que ele doente. Então... ele pôs seu rosto apertado em meu peito. Ficou ruborizado e tentou me penetrar. De repente, eu queria que ele fizesse aquilo. Não era estranho. Estranho é que, mesmo quando eu queria, ele não conseguia. Tudo estava vedado e seco”.
                Logo no início acompanhamos a personagem em visita a seus avós onde irá passar a noite no mesmo quarto que era dela quando criança. Lá estão intactos os mesmos objetos e decoração de sua fase menina, e por isto mesmo lá também estão intactas as suas lembranças infantis. Ao encontra-se sozinha noite adentro tentado conciliar o sono ao som sutil e irritante do tic-tac de um relógio se vê então assustadoramente vigiada por uma soturna velha. O grito de pavor lhe foge a boca e ao acender a luz nada há. Dia seguinte volta ao trabalho, mas sua vida não correrá a rotina de antes, pois aos poucos a sua própria loucura vai lhe dominando. As suas alucinações são revisitações de seu passado.
                Em outro momento do filme a personagem extravasa: “Papai era tão bom. Era alcoolista. Sempre me abraçava. Nos dávamos tão bem. Mamãe dizia: “basta de mimos”. E vovó: “seu pai pode ser bom, mas é um vagabundo e preguiçoso”.  Mamãe estava de acordo. Elas o menosprezavam e queriam o meu apoio. E foi assim. passei a me envergonhar quando papai me abraçava e beijava. Me preocupava em agradar em agradar a minha avó. Então tive minha própria filha. Anna gritava de um modo estranho. Era diferente das outras crianças. Não gritava porque estava com medo ou tinha fome. Era mais um grito verdadeiro. Era algo primitivo. Às vezes eu queria bater nela por isso. E às vezes me desmanchava em ternura. Mas sempre comigo no meu caminho. Um temor egoísta, estranho. Não deveria haver uma entrega. E a felicidade apagou-se. Lembro da primeira vez que ouvi mamãe chorar. Eu estava no quarto e ouvi mamãe e vovó falando. Vovó falava com uma voz baixa, estranha... e de repente mamãe gritou. Eu não sabia o que se passava. Eu estava muito assustada, mais por causa da voz da vovó. Fui até a sala e vi mamãe sentada numa cadeira perto da janela e vovó sentada no meio da sala. Quando cheguei ela se virou para mim e olhou. Era a cara de vovó, ainda que não era. Olhava como um cão raivoso pronto para morder. Corri para o quarto e rezei para que vovó tivesse sua cara de volta e que mamãe não chorasse. É tão horrível quando as caras mudam e não se pode mais reconhecê-las”. Isto é Bergman na veia, sacou?

                Se a angústia é a fala entupida, como escreveu Ana Cristina Cesar, em Face a Face acompanhar o seu desentupir e eclosão. A angústia é existencialmente um fenômeno intrinsicamente humano e é a primeira manifestação da alma humana muito antes de qualquer afeto. Nascemos com angústia e com angústia convivemos. Certa vez um outro cineasta, Andrei Tarkovsk, disse que em Bergman não havia simbolismos, porém um naturalismo quase biológico. E é isto que faz Bergman em seu filme sob comento: ir além das sombras e descobrir a alma em sua mais obscura morada.
                O próprio Bergman nos revela que as pessoas (seus personagens) são emocionalmente analfabetas. Prossegue ele: “elas não tem a menor auto compreensão, não sabem nada a respeito de si mesmas. Elas vivem suas vidas. Elas são educadas e talentosas, leram todos os livros, sabem de tudo, são orientadas pelo meio. Elas têm todos os recursos, mas não conseguem lidar com os abcs emocionais mais simples. Sim, somos todos analfabetos emocionais.
                Rendo-me a Bergman. Seu cinema é universal e suas obras cinematográficas beiram à perfeição fílmica, resvalando nas entranhas secretas de nossos psiquismos mascarados de personas. A alma nos demonstra ele é fêmea, e assistir um filme de Bergman é atravessar espelhos e recolher os cacos.

                      Amanhã vou colá-los de volta no lugar e poder sair por aí mostrando pros outros que sou feliz.

Joaquim Cesário de Mello