quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A INVENÇÃO DA SOLIDÃO


   

Quase ao acaso (não há, segundo Freud, acaso no inconsciente) deparei-me em minha biblioteca pessoal com um já lido antigo livro de Paul Auster, “O Inventor da Solidão” (ed. Best-Seller/1997).
      Paul Auster é um escritor americano vivo e também roteirista de cinema bissexto. Autor de vários livros, alguns deles, inclusive, sucessos editoriais, tais como "Trilogia de Nova York".
      “O Inventor da Solidão” não é um livro dos mais famosos do escritor. Livro pequeno, não o transforma por isso em uma obra menor. Trata-se de um livro que recorda suas lembranças, ao mesmo tempo em que mescla seus vastos conhecimentos sobre literatura, psicanálise e filosofia. O cerne do texto é a questão da paternidade.
      Após a morte do pai o autor, iniciando seu longo e elaborativo processo de luto, vai mosaicamente reconstruindo a imagem daquele que contribuiu para lhe dar a vida e que a vida agora o tira dele. A partir deste pai morto, não mais existente, Auster vai se dando conta do um pai desconhecido até então. Através dos objetos que um dia pertenceram a ele temos o começo do desnudar de um pai. Não é à toa, portanto, que o primeiro capítulo tome o sugestivo título “Retrato de um homem invisível”.
 Pode alguém conviver tanto tempo com outro e dele quase nada conhecer? Parece que Paul Auster nos responde positivamente a tal indagação. E não estamos aqui a falar dos segredos íntimos de uma pessoa, mas sim de sua própria solidão, como assim o faz Auster quando descreve o célebre quadro de Van Gogh “O Quarto”: “Observe ali. Observe com cuidado. A cama bloqueia uma porta, a cadeira bloqueia a outra porta, a janela está fechada: não se pode entrar e uma vez lá dentro, não se pode sair... O homem nessa pintura ficou o tempo demais sozinho, debateu-se demais no abismo da solidão. O mundo termina na porta bloqueada. Pois o quarto não é a representação da solidão, é a própria solidão”. Arguta sensibilidade de um observador-escritor profundo.
      Qual o lugar da perda de um pai na vida de um filho? Inicialmente, provavelmente, será a sensação de um vazio; depois, estranhamente, haverá  de vir dúvidas: “será que o amei mesmo?’ ‘a quem amei?’  ‘ele me amou?” “a quem ele me amou?”. Talvez mais do que a inquietação da ausência física haja a inquietação da ausência das respostas.
       Os objetos e as fotografias do morto são agora o terreno aonde se possibilita a construção de um novo encontro. Os óculos com que antes ele via a vida repousam inertes olhando o filho, assim como um fio de cabelo na escova é o resto de uma seiva outrora nutrida de anseios e frustrações.
      Quem era esse pai que se escondia por detrás de suas inúmeras máscaras de convencionalismo e obrigações, e que sempre lhe escapou fugidio pelos meandros miúdos do cotidiano? A imagem edificada pelos anos de evitação era assim como que um retrato incompleto de uma pessoa, lembranças de um não-encontro: um pai lacunar.
      O pai de Auster ficara órfão ainda na infância e este vazio que carregara trouxera-lhe um retorno no conhecer do filho. Um pai e um filho. Duas ausências. Dois estranhos. Um órfão de fato e o outro psíquico. Um pai cujo amor de seu pai lhe foi tirado aos sete anos e que assim só soube amar de maneira interrompida. Um filho cujo destino foi ser amado por um pai que só sabia amar um amor infantil. O filho cresceu. O pai não.
      Uma mesma raiz e duas solidões. Dois continentes separados por um imenso oceano. Uma única distância vivida na proximidade dos corpos. Ambos quartos escuros, fechados, trancados, que não se sabem apagados. A perplexidade que Auster nos dá no refazer de seu pai através de cacos e retalhos é mais que uma leitura poética, é uma comovente história de uma história invisível e que somente após a perda se recupera com a força de uma história feita a dois.
      Em seu mergulho na memória a partir da morte do pai Auster abre seu baú de lembranças com a singela obviedade da existência: "Num dia há vida... E então, subitamente, acontece a morte'.  No cascavilhar do escombros deixados pelo pai o autor/personagem expõe uma dais mais belas paginas da literatura contemporânea. O trecho abaixo que o diga por si mesmo:

"Não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter de encarar os objetos de um morto. As coisas são inertes: Têm significado apenas em função da vida que as utiliza. Quando essa vida acaba, as coisas se transformam, mesmo que permaneçam as mesmas. Estão lá e no entanto não estão: fantasmas tangíveis, condenados a sobreviver num mundo a que não mais pertencem. O que se pode pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas esperando silenciosamente para ser usadas por um homem que não voltará a abrir a porta? Ou os pacotes de camisinhas espalhadas pelas gavetas repletas de cuecas e meias? Ou um barbeador elétrico aguardando no banheiro, ainda cheio de pêlos cortados da última barba? Ou uma dúzia de tubos vazios de tintura para cebelo, escondidos num sacola de viagem? - revelando subitamente coisas que não temos vontade de ver, nem desejo de saber. Há nisso certo sentimentalismo e também uma espécie de horror. Por si só, os objetos nada significaam, como os utensílio culinários de uma civilização desaparecida. E no entanto dizem-nos alguma coisa, parados ali não como objetos mas como resquícios de pensamentos, de consciência, emblemas da solidão na qual um homem passa a tomar decisões sobre si mesmo, se irá pintar o cabelo, se irá vestir esta ou aquela camisa, se irá viver, se irá morrer. E a futilidade de tudo isso quando vem a morte."              
       O psiquismo de um morto que em vida era como o enigma de uma esfinge a desafiar o filho constantemente "Decifra-me ou te devoro". A mente de um falecido na continuidade do filho - herdeiro e guardião de um baú de memórias e ausências - revela-se nua e inteira. Auster nos oferece essa viagem aos recônditos de um pai, quase como um intruso ou um ladrão, como ele mesmo confessa, a saquear os locais secretos da alma de um homem.
      Quisera que os pais soubessem disso antes que o saber não lhes tivesse mais nenhuma valia. Conhecer-se por quem não é, é perder-se - diz o poeta. Haveria assim a chance em vida do compartilhamento e do encontro; do pai que se faz conhecer e conhece o filho, e um filho que conhecido se conhece mais. Não se chegaria, portanto, ao ponto desses tristes versos de Fernando Pessoa, que abaixo transcrevo, e que não quero para ninguém, menos ainda para aquele que vejo quando me quando me vejo no espelho:


"Quando quis tirar a máscara,
 Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo".


Joaquim Cesário de Mello

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

LEWIS CARROLL NÃO MORA AQUI: REFLEXÕES NADA INFANTIS SOBRE UMA OUTRA ALICE







Estamos acostumados a nos lembrar de Alice do País das Maravilhas, porém nem só de Alice meninas e ninfetas a atrair olhares lascivos de pedófilos e nabokovianos é feito o mundo das letras e das artes. Estou aqui para apresentar uma outra Alice, uma Alice de que é feito a história do filme de Wim Wenders “Alice nas Cidades”. Mergulhemos, pois, no tempo e retornemos ao ano de 1974 quando foi feito o filme.
O referido filme se baseia nas primeiras viagens de Wenders aos Estados Unidos e nele temos o personagem de Philip Winter que vai à América em busca de reportagens e de escrever um livro. Lá ele conhece uma mulher e sua filha que tentam, assim como ele, voltar à Alemanha, porém o aeroporto está fechado para decolagens. Com elas ele divide um quarto de hotel, mas ao acordar dia seguinte ele se depara com a ausência da mãe que deixa com ele sua jovem filha Alice.

Trata-se de um filme sobre a paternidade. Não a paternidade biológica, mas uma paternidade iniciática onde o personagem de Philip sofrerá uma transformação. Dois destinos destinados a serem um só. É Alice quem, aos poucos, ensina aquele homem de meia-idade e em crise existencial a essência transmutativa de sua angústia. A angústia, a depressão e o medo de ter medo vão se transformando em esperança e ação. Embora a Alice do filme tenha 9 anos, ela parece mais madura do que seu acompanhante forçado. A maturidade de Philip se inicia ali, quando finalmente tem que assumir as responsabilidades típicas de sua faixa etária.

 Alice e Philip, em suas solidões a dois, vão a Europa em busca da avó da menina. Avó que é antes de tudo uma metáfora da busca, a busca pelo sentido da vida. Diz Wenders: “encontrei com Alice nas Cidades a minha própria caligrafia no cinema”. O filme - ao estilo ” road movie” - envereda por duas viagens: a viagem das estradas e a viagem ao interior da alma.

Philip é uma criança aprisionada em um corpo adulto (quem de nós também não é?). Às vezes precisamos encontrar a infância de uma criança para nos livrar de nossa própria. A juventude menina ensina a maturidade recalcitrante a ser adulta. Alice parece estar sempre dizendo que a o adulto não está depois da curva da esquina do futuro, mas sim no presente, principalmente daqueles que olham o contorno do mundo com olhos de mais de trinta.

Os personagens de Wenders perambulam pela vida algo solitários, algo desolados. Em sua variada gama de significados, e em meio ao lirismo das imagens em preto e branco e ao concreto das edificações urbanas, o nomadismo de ambos se enlaçam. Surge a promessa de um novo amanhã, modificado pelo acaso dos encontros, encontros estes que se iniciam sem fim pré-determinado. Como diz Gilles Deleuze, “nunca é o início ou fim que é interessante; o início e o fim são pontos. O interessante é o meio”.

E o que é um pai em termos psíquicos? Será aquele em que uma criança necessita para poder crescer? Um interdito vital que dessimbiotiza a relação primeva entre mãe e filho? A recusa ao gozo narcísico com a fusão do psiquismo infante e seu objeto inaugural (mãe) se possibilita graças a presença de uma função paterna que em troca do imaginário paraíso perdido oferece ao filho(a) toda a extensão do mundo. É somente fora do casulo simbiótico que uma mente pode se desenvolver e uma pessoa pode emocionalmente crescer.

Filosófico e psicológico “Alice nas Cidades” é o filme de Wenders mais emotivo e emocional de todo o conjunto de sua obra até então. Impregnado de metalinguagens o filme parece querer descortinar o que procura o ser humano em sua viagem pela vida. Procura novos objetos depois que o objeto materno deixou de ser exclusivamente seu. Os infindáveis e infundáveis objetos do desejo. Obscuros objetos do desejo. O mundo pode ser até um mundo em convulsão, mas ele está sempre a nossa frente se oferecendo aos olhos para ser descoberto.
Alice anseia chegar a casa de sua avó que ela mal lembra onde mora. Possui apenas um velho retrato. Decididamente o filme é dedicado à memória, uma viagem pelas lembranças através dos olhares. Dois olhares que se entrecruzam: um já cansado e desiludido e um outro ainda puro e virginal. A junção dos dois expande o universo e o horizonte de ambos. E é a jovialidade menina de Alice que guia Philip pelo mundo, ao mesmo tempo em que este propicia a ela a olhar para frente através de seu passado. Um filme de olhares, como de olhares são feitos a alma humana.
Realmente nem toda Alice atravessa espelhos. Algumas são pra poucos o próprio espelho.

Joaquim Cesário de Mello

                

sábado, 4 de janeiro de 2014

PEQUEÑOS POEMAS SABÁTICOS

POÉTICA

Poesia é como mulher fogosa
que sentada cruza as pernas
mostrando a calcinha.

Minha poesia 
é uma forma de dar
uma dedada na vida.




INFANTICÍDIO

Na saliva da tua boca
um filho meu agoniza
(se fosse menina
podia ser outra Camila).

Joaquim Cesário de Mello