quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

BARAFUNDA DE IDEIAS OU SAMBA DO CRIOLO DOIDO

"Se ensinares, ensina ao mesmo tempo a duvidar daquilo que estás a ensinar"
(Ortega e Gasset)
   


   Geral e frequentemente vivemos de maneira inconsciente em relação a muitas coisas, principalmente inconscientes da própria inconsciência. Apenas vamos respirando e vivendo. Muitos se dão conta, às vezes, da ausência de um significado profundo de se estar vivo e da condução da vida que se vive. Quase como que robotizados uma grande maioria de nós vai vivendo como uma espécie de refém dos acontecimentos da vida que se vive, isto é, entorpecidos ou inebriados em um mundo aparentemente conhecido e confortável. Mas será que o mundo circundante e interno é exatamente como o vemos? Haverá outras realidades paralelas a coabitar nossos espaços? E se houver, elas existem simultaneamente, lado a lado? Afinal, o que é realidade? Ela é como nós achamos que é ou ela é como ela realmente é? Vemos e sentimos a realidade com os nossos pensamentos. E de que é feito, então, nossos pensamentos? Como se forma a nossa consciência?
               
      Segundo o físico alemão Werner Heisenberg, prêmio Nobel de 1932, ”o que observamos não é a natureza propriamente dita, mas a natureza exposta ao  nosso modelo  de questionamento”. Do ponto de vista neurológico a consciência humana tem a ver com a excitabilidade do sistema nervoso central aos estímulos externos e internos do organismo. É através e por meio da consciência que nos tornamos psicologicamente pessoas, pois ela reflete a individualidade de cada ser. 

    A consciência é a sede de nossas percepções, pensamentos e emoções. Duas pessoas expostas a uma mesma experiência podem ter duas consciências diferentes sobre a mesma, visto que as inferências e as abstrações poderem ser distintas de pessoa para pessoa. A atenção consciente de algo, por exemplo, é discriminativa, isto é, é escolhida dentro de um repertório vivencial que elabora as sensações percebidas de um dado fenômeno. O psicólogo americano William James chegou a criar a expressão “fluxo de consciência”, com vistas a explicar a consciência como um fluir constante, ou seja, a consciência está sempre se modificando, não sendo possível experimentar o mesmo pensamento e a mesma sensação igualmente mais de uma vez. Sob sua ótica a consciência não é recorrente, mas sim cumulativa.
                 Em termos psicológicos a consciência é a percepção do eu por si mesmo. A consciência de um self nasce quando a mente se define através da autoconsciência e da auto-expressão. O tema da consciência humana e como ela influencia o comportamento e a conduta humana é objeto de estudo de vários ramos e ciências, entre elas a filosofia, a própria psicologia, a psiquiatria e a neurologia.
                Tomar consciência de algo ou alguma coisa engloba vários estados psíquicos, como a atenção, por exemplo. Fatos que não chamam a atenção de um indivíduo são como não existissem para ele, mesmo que tais fatos possam estar influenciando suas percepções, sensações e respostas, mas o sujeito desatento a tal não se dá conta. São inúmeros e incontáveis a quantidade de informações que  nos chegam, porém não tomamos consciência de tantas. Nem todas nossas percepções são conscientes e muitas vezes processamos uma informação de maneira mais superficial. A realidade, assim, não pode jamais ser apreendida pela consciência humana exatamente como ela ou está ocorrendo. Melhor vejamos.


                Realitas (latim) significa coisa, ou mais precisamente “tudo o que existe”. O que é real, portanto, é tudo aquilo que existe fora da mente. O que está dentro da mente não é tangível, embora possamos chamar ontologicamente de “realidade psíquica”. Dentro, conjugadamente nossas percepções, sensações e emoções, temos a imaginação, a fantasia, as ideias e os sonhos. No intrapsíquico, pois, temos a ilusão. O real, enquanto externo, é psicologicamente uma imagem que fazemos do mesmo, pois a mente não somente “vê” a realidade, ela interpreta a realidade. Neste sentido, a imagem da realidade que faz o homem é uma representação psíquica, um modelo do real. 
           Entre quem somos por dentro e o que temos por fora é intermediado por uma lente ou filtro. O sujeito cognoscente não descobre a realidade, porém a constrói. Fenomenologicamente falando o mundo externo nos aparece, mas ele não aparece mentalmente como ele exatamente é, porém modificado (pouco ou muito) pela consciência que o conhece. A realidade embora seja para todos – e é indiferente a todos – ela é um ponto de vista, um ponto de vista individual, mesmo que compartilhável. É como se a realidade fosse um enorme e infindável espetáculo e nós os expectadores. Expectadores-participantes.
                Mas, pera aí. Isso quer dizer que a realidade inexiste para o humano, somente o que temos são representações da mesma? Talvez sim, talvez não. Filmes como O Show de Truman e a série Matrix podem funcionar como alguns interessantes exemplos de como nos enganamos ao pensarmos que a realidade é o que pensamos ou enxergamos. Em um diálogo quase platônico (nos remete ao mito da caverna de Platão) no primeiro filme Matrix entre os personagens de Neo e Morfeu temos:
Neo: O que é Matrix?
Morfeu: Você quer saber o que é Matrix? Matrix está em toda parte [...] é o mundo que acredita ser real para que não perceba a verdade.
        E o que é verdade afinal? Depende. Para Nietzsche, por exemplo, a verdade é um ponto de vista. Já para outro filósofo do porte de Ortega Y Gasset a verdade não é relativa, mas a realidade sim. Ou ainda há os mais céticos, como o poeta Pablo Neruda, que chegou a afirmar que “a verdade é que não há verdade”. Ou como disse Oscar Wilde: “raramente a verdade é pura, e nunca é simples”. Viram, pois, em que confusão eu me meti? Quem mandou eu tá de bobeira no cotidiano e começar a chafurdar neste lamaçal misterioso da vida humana? É melhor parar por aqui, senão endoido. Você não?...

Joaquim Cesário de Mello



quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

CONFISSÕES EM UM DOMINGO SINCOPADO





         O cinza de junho já nos encobre às cabeças protegidas pelos tetos dos apartamentos e das casas. Em nossas pequenas colmeias cercadas de cotidiano olhamos as ruas molhadas e os intermitentes pingos de chuva. Quase não ouço o cantarolar matinal dos pássaros. Tudo lá fora parece tão deserto quanto os cemitérios que trago dentro de mim. A cerração que desaba sobre nós pode reduzir a visibilidade dos horizontes, contudo aprofunda-me de interiores onde encontro revivido os meus mortos. Por instantes sou londrino e sou úmido, sou um inteiro silêncio cheio de sussurros. As vozes que me vêm de longe e de ontem ensurdecem-me dos pequenos ruídos domésticos. A neblina que de fora da janela não se forma aproxima-se de mim, e agora me vejo assim enevoado pelo contato das minhas superfícies com meu solo. Algo se forma em minhas particularidades contidas quando, privado do sol, torno-me uma bruma condensada pela evaporação das lembranças. Estou como sempre estive desde a minha infante juventude: só e cercado de livro por todos os lados. Será isto que sempre fui? Será que sou uma ilha sem pontes, ou será que sou um estrangeiro em minha própria casa? Talvez eu seja um exilado do futuro do meu passado, um expatriado do território de minha história. Seja lá o que eu realmente for, somente sei que não sou quem poderia ter sido. Entre a criança e o homem há um intenso corte, e esta cicatriz que de muito carrego me faz sempre lembrar que sou um Joaquim descontinuado.

                Herdo dos meus ancestrais este baú de memórias. Entre quinquilharias várias, resquício de uma civilização familiar fenecida lá está, como quem me espera, uma antiga fotografia de minha infância não menos antiga. Por detrás do preto e branco manchado de tempo a criança me olha através dos anos. O que pensa ela sobre o que sou? Será que em seus ingênuos olhos, cujo olhar que vem de tão longe pelas frestas das reminiscências, sonha ela futuros imaginários onde não habitarei? Contemplas o teu pior pesadelo corporificado no colorido cinzento do hoje que antes te era amanhã? O que tu vês menino com estes olhos que um dia já foram os meus?
                  No mirar de minha mocidade primeira escondem-se desejos que agora me chegam transformados em vagas lembranças. Ficaram tão aprisionados como este meu olhar desbotado, nos instantes distantes que a foto não flagra, as aventuras galácticas do astronauta que jamais me tornei. Os monstros alienígenas que tantas vezes derrotei estão enterrados junto aos brinquedos esquecidos em algum lugar do armário que já não existe mais. A eternidade da infância parece terminada ali naquele retrato de um minuto congelado. Durei apenas a perpetuidade finita de minhas fantasias pueris cuja pureza agora se perde no encontrar deste comigo adulto. Desculpe-me meu ontem pelo hoje que te oferto.
                               Afoguei meus sonhos com o acumular dos aniversários. Andei por becos e ruelas, dobrei esquinas e segui em frente por vias estreitas ladeadas de elevados muros e aqui cheguei depois da última curva. Meu itinerário foi feito pelo passear impreciso dos silentes pés. Afastei-me tanto do menino, agora eu sei, que chego até a duvidar se nasci menino. Talvez eu não tenha sido uma criança sonhando com o adulto, mas um homem que sonha com a criança. Minha vida tem sido uma noite inteira onde sonâmbulo transito entre uma quimera e outra. Isto o que sou: um intervalo onírico onde me construo como um castelo no ar.
                               Sim, tornei-me este homem interrompido, uma criança inacabada. Minha humanidade toda é feita do que não fiz e do que nunca farei. O passado permanece em mim colado como uma segunda pele que por debaixo do tecido carnal que me encobre e que se expõe nos espelhos encapsula a minha mais verdadeira substância. Em meio à derme e o esqueleto encontra-se um Joaquim pretérito vindo de uma era anciã que não caducou ou sepultou seus apetites. O anoréxico sonhador em que me converti é o oposto do bulímico em que outrora já fui. Fiz-me assim de sonhos vomitados.
                               Acaso fosse uma fruta estaria apodrecida no asfalto urbano e infértil de minha existência. As sementes que nela residem não tiveram a sorte de encontrar o pó da terra para germinar. E como um filho que não coube ser pai sou ao mesmo tempo órfão e estéril, pois infecundei minha vida com a fecundidade minhas perdas.
                                O rei tornou-se súdito, o guerreiro tornou-se covarde, e o médico virou paciente e o espadachim transformou-se em escudo. Nada do que quis ser se fez. Nada do que sonhei transbordou-se em realidade. Tudo que fui era apenas brincadeiras, folias de um menino que se levava a sério, enquanto o homem que aqui escreve e que se acredita sério somente é um pálido reflexo de um folguedo juvenil. Uma galhofa com número de identidade.
                               Nestes dias em que ainda respiro sou um rei sem reinado, sou um guerreiro entediado em tempo de paz, e o branco que me encobre é tecido pelas ausências das realizações. Como posso esgrimir se perdi a espada? Como posso voar em espaços siderais se a minha nave ficou ali no distante olhar da criança neste retrato que me olha sem me amar? Sou um cowboy sem cavalo, sou somente aquele que escreve poemas para purgar suas moras e suas culpas.

                Mas se eu continuasse a ser quem era e quem poderia ter sido não seria hoje quem sou.  Não sendo quem sou, não escreveria o que ora escrevo, nem pensaria ou sentiria o que penso e sinto. E assim não seria eu: seria outra pessoa. Não conheceria quem conheci, não amaria quem amei e amo, não derramaria as lágrimas que derramei, nem muito menos sorriria os sorrisos que sorri. Sequer teria hoje as nostalgias que tenho. Seria tudo então tão diverso e diferente que já não me reconheço antes de onde me interromperam. Minha continuidade, portanto, é esta própria descontinuidade que chamamos de biografia ou história. Definitivamente não sou um homem interrompido, mas um homem percorrido que olha os dias com olhos de menino triste.





Joaquim Cesário de Mello