Tão logo as luzes se apagaram recostou-se
relaxadamente na poltrona acariciando-lhe os braços com a ternura de um recente
enamorado. Mergulhado na negritude inicial aconchegou-se à escuridão como quem
se recolhe a um colo feminino e sem cheiro, permitindo-se oscilar impreciso por
entre indefinidas sombras noturnas. Embora fosse tarde lá fora, deliciava-o a
sensação embriagante e terna das noites artificiais, na ausência dos ruídos
mundanos. Vingava-se assim das tardes e de suas solidões, assassinando-as com a
obscuridade das trevas improvisadas.
Seguro no abraço da cadeira se postou frente à
imensa tela branca iluminada como se aguardasse a chegada de uma mulher amada.
Os segundos que antecedem à ilusão eram vazios e lentos, porém necessários ao
ritual da passagem que se sucedia. Os objetos, as coisas e as pessoas
excluíam-se do redor, restando apenas a visão retangular dos sonhos acordados.
Não havia mais ninguém, somente ele e os rostos próximos dos outros distantes.
Despido do social, vestia-se de novas fantasias onde o pensamento se diluía em
quimeras e desejos. Com que sonha o homem neste instante senão consigo próprio?
– ele é feito de imagens e a tela é seu espelho e sua extensão. Flutuava para
além de si, redescobrindo antigos afetos hibernantes.
Para ele, pouco importava o filme ou a trama. O
cinema era seu sepulcro e a sua sobrevivência. Detestava a claridade
denunciante das filas e das salas de espera, onde casais trocavam carícias
permitidas, ansiosos para se embrenharem no negrume anônimo das mãos e das
coxas. A felicidade alheia lhe inquietava, da qual se defendia desviando-lhe os
olhos. Por isto levava sempre consigo um livro qualquer que lhe auxiliasse a
distrair a atenção e a dor. Os livros são melhores que gente, costumava dizer,
pois quando nos incomoda basta fechá-los, enquanto as pessoas cobram e sugam.
Nunca lhe fora difícil estar desacompanhado. Nascido
filho único, reinara por inteiro em um quarto somente seu, cujos brinquedos
amargavam a falta de outros toques. Houve momentos, é verdade, e não foram
poucos, que aspirava irmãos com quem compartilhar o medo das madrugadas, porém,
como Deus era surdo às suas preces silenciosas, inventara amigos imaginários a
quem, assim como os livros, podia mudá-los tão logo enjoasse. Adormecia quase
sempre cercado de cavalheiros, guerreiros e soldados. Odiava a visita dos
primos e dos vizinhos. Magro, frágil e tímido, era constantemente subjugado nas
brincadeiras de força, enquanto os pais conversavam na varanda crentes de sua
felicidade. Inferiorizado e humilhado buscava
a supremacia nos estudos, o que lhe rendia elogios e medalhas. Não sabiam os
adultos que os livros e os óculos eram sua armadura e seu escudo. Cultivava
assim a inteligência, desertificando os sentimentos.
A vida começa na tela. Escorrendo o corpo pela
cadeira, procura a melhor posição, inclinando a cabeça como quem repousa em
travesseiros e seios. Sumido da tarde, dilui-se em cores múltiplas.
Desaparecido do dia se confunde no piscar das fotografias. Não importa o filme
ou a trama, o que importa é que o filme jamais acabe e lhe devolva a realidade
tantas vezes sonegada.
Joaquim Cesário de Mello
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