De onde senta, por detrás da mesa e do
trabalho, observa-a passar evaporadamente como uma noite de domingo. Adora o
deslizar de sua mão em seus cabelos compridos como se fosse dele o toque e a
carícia movimentando desejos. Quisera ser as roupas que a vestem só para
juntar-se ao corpo dela e abraçar-lhe com a suave fúria dos que acasalam. Não
importa se é linda ou bela, já que a possui tão logo ela passa, afinal aquela
iniciante mulher, que em breve também envelhecerá, ocupa-lhe o olfato e a vista
na intimidade negada de uma cumplicidade incorrespondida. Pois em todo o tempo
em que a presencia passar não foram mais que duas vezes que se falaram. Na
primeira, ele tossiu; na segunda, gaguejou – suspiros amorosos do infeliz homem
que somente ele conhece o amor. Porém, antes assim: não fosse o sonho restaria
o tédio a desertificar a alma e o pouco resto de sua memória.
O sonho o puxa para frente ao mesmo
tempo em que a memória o retrai para trás. Em meio a fluxos e refluxos é ele
alguém de instantes, encarcerado a um presente constantemente transitório,
precário de possibilidades. Sua atualidade é o curto espaço espremido pelas
virtualidades das lembranças e das expectativas em que vive seu invisível amor.
Quando amanhã o atual for ontem (toda atualidade traz em si sua inatualidade e
seu fim), carregará dela somente recordações de sonhos irrealizados, pois é ele
igualmente, e sempre enquanto ainda existir, um ser faminto de suas tantas e
tantas impossibilidades.
Ama-lhe ele em todos os momentos dos
seus momentos um incansável e silencioso amor amar de impresenças. As
exterioridades inexprimem interiores onde lá, na ruidosa mudez deteriorante dos
órgãos, conhece unicamente ele o fervilhar consumante dos apaixonantes afetos.
No íntimo de si não há qualquer solidão, mas a companhia infinda daquela jovem
mulher que não fora do seu arbítrio desejar e com a qual ocupa-se inteiro
completamente, a tal ponto que não há mais sequer lugar para outro sonho que
não seja ela. Quem o presencia assim costumeiramente desacompanhado há de
confundi-lo com um homem só. Não sabem eles que nas praças, ruas, praias,
cinemas, restaurantes e localidades várias, acha-se ela nele, na irreciprocidade
egoísta de um sentimento amordaçadamente lacrado. Quem o olha assim
costumeiramente só nunca há de saber que ali está alguém que vive acordado para
dentro, como se a vida lhe fosse o oposto de fora.
O amor dorme no coração do homem um
sono de insônias, somente velado por calados pensamentos que o devoram com
tamanha fome e martírio que lhe é a dor muito mais uma companheira. Ah,
soubesse ela daquele tanto afeto decerto surpreender-se-ia ao descobrir, por
detrás do silêncio de poucas amabilidades e diversos olhares discretos, a chama
impagável a queimar o peito anonimamente oculto no desconhecido de um homem,
cuja única função era estar ali, naquele obscuro canto de uma vida, amando-a
com a limpidez transparente quase visível das coisas invisíveis.
Quem sabe um dia (o que seria de nós
acaso não esperássemos dias?) ela o veja enfim em sua singularidade infinda e
aceite então suas mais inconfessáveis ardências. Quem sabe um dia, quando a
maturidade já lhe encobrir o cheiro adocicado das flores e ele não mais estiver
sentado em seu birô de anos, possa ela enxergar no habitual do seu discreto
canto o vácuo deixado pela inevitável ausência, e sentir saudades daquele amor
que de tão verdadeiro jamais ousou fazer-se notícia. Quem sabe um dia...
(originariamente publicado no Jornal do Commercio, em 03/04/2000)
Joaquim Cesário de Mello
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