segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O INCOLORIDO DA ALMA



É nas ruas que, muitas vezes, surpreendo-me. Como passo cerca de 10 horas diárias no consultório, vez ou outra, nos intervalos da vida, saio para a calçada fumar um cigarro e apreciar o céu, as nuvens, os pássaros, as árvores, banhando-me da claridade morna do sol. Ali estava eu, mais uma vez, quando uma mulher de meia-idade acanhadamente aproximou-me de mim. Pedindo de logo desculpas continuou dizendo "sou negra, mas não sou...". Não a deixei concluir, interrompendo-a: "...você é uma pessoa". Pediu-me algum trocado e depois, tão envergonhadamente como se aproximou, retirou-se e seguiu seu rumo e destino. Deixou-me ela como antes estava sozinho cá com meus pensamentos. E prossegui pensando o inusitado da cena.
"Sou negra". E daí? Motivo de orgulho ou vergonha? Negro, branco, pardo ou amarelo somos todos humanos. Mas a cor da pele tem lá seus estigmas, suas histórias e seus estereótipos. Devíamos é ser incolores. Seja raça, seja etnia, seja povo, todos amamos, sofremos, sonhamos e nos frustramos. Todos, não importa a categorização imposta, temos medos, alegrias, tristezas, ciúmes, raivas, ansiedades, ternuras, invejas, vergonhas e orgulhos. Acaso furem minha pele com uma agulha qualquer doerá independente da pigmentação da minha derme. É, podemos ser diferentes em nossas biografias, sonhos, gostos e sabores, mas somos humanamente iguais e estamos todos no mesmo barco chamado vida.
Todavia as coisas não são bem assim. Constitucionalmente somos todos iguais perante à lei. Mas somos socialmente desiguais. Dizem que a escola é para todos. Mesmo que todos fossem à escola, as escolas não são iguais. Injustiça? Sim, injustiça. Parcialidade? Sim, parcialidade. Decididamente o mundo dos homens está bem longe do ideal. Ainda hoje é bastante pertinente o célebre discurso do pastor americano e ativista dos direitos humanos Martin Luther King "I have a dream", feito em agosto de 1963, quando professa seu sonho e diz: "Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter."
Nosso apartheid só não é invisível porque é impossível não ver a desigualdade social imperante. O racismo é uma fratura exposta que transpira até na necessidade de políticas de cotas. Somos ainda herdeiros de nossas bases coloniais escravocratas, cuja exclusão social gerou inúmeros bolsões de pobreza. Não há nada de natural na divisão entre pobres e não pobres (evito a palavra rico), e a questão da discrepância social de onde emerge ou se preserva o racismo é um dos principais mecanismos de sustentação na construção da pobreza. Nas chamadas diferenças étnicas há um cruel e perverso instrumento ideológico que contribui inclusive para justificar o processo de dominação social, resvalando e desembocando em preconceitos de classe. O antropólogo Darcy Ribeiro, em sua lúcida obra O Povo Brasileiro, já afirmava que "apesar da associação da pobreza com a negritude, as diferenças profundas que separam e opõem os brasileiros em extratos flagrantemente contrastantes são de natureza social”. 


Não sou sociólogo, mas provavelmente a forte correlação sócio e historicamente construída entre raça e pobreza geram preconceitos de cor e igualmente preconceitos de classe. Imagino o quanto dessa carga toda deve repercutir na formação da autoestima de um sujeito.que desde cedo sofre os impactos diretos e indiretos da discriminação e quem é sonegado a partilhar do bolo social.

     Não sei, porque nunca precisei, se uma pessoa se sente humilhada ao se aproximar de outra em busca de algum dinheiro para alguma necessidade. Mas creio que há humilhação ao se responder "não tenho trocado".
     Quanto a mulher que a mim me veio pedindo desculpas por ser negra, não há nada a se desculpar. Eu é que peço desculpas por não ter-lhe perguntado o seu nome.


Joaquim Cesário de Mello

Um comentário:

Bertilia Lins disse...

Parabéns Joaquim Cesário pelo texto,muito bom!