quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O SENHOR DA POEIRA E DAS SOMBRAS

Logo ao passar pela porta que o separa do mundo dos vivos, ficou parado um instante como que suspenso em meio àquela atmosfera bolorenta impregnada de fungos mofando móveis, objetos, quadros, livros e as outras coisas que preenchem e circundam todo o espaço amplo da sala. Tudo é tão antigo e gasto que parece ser a casa um enorme museu a conservar o que ainda resta dos últimos vestígios de uma remota civilização desaparecida (passado tem o cheiro desagradável do envelhecimento da história). Ali, onde mora o desusado tempo, reside também o pai e seus consumidos e antiquados trastes, todos esquecidos por tudo que a eles da casa é fora, não fosse o filho ocasionalmente revisitar o homem que lhe era mais o guardião de sua distante meninice. Enquanto houver velhos (esses diminutos adultos de ontem) a frequentar, haverá alguma infância a ser revisitada ainda mais uma vez, de novo.

Infelizes aqueles que não têm velhos, pois lhes sobram apenas a insonoridade monótona dos álbuns de fotografias. Ao fechar a porta, cortando feito uma lâmina o domingo, uma lufada de ar levanta e espalha a poeira antes sossegada em seu repouso quase secular sobre a superfície rígida das coisas. No azular da sala mal iluminada pelas frestas envidraçadas das janelas fechadas bailam granulados fantasmas acordados pelo repentino vento – em breve retornarão a quietude das planícies onde tomarão a forma inanimada das peças e dos objetos domésticos.
O filho aguarda antes de dar o primeiro relutante passo através de tantos espectros paternos, enquanto o vê, aos poucos, surgir do fundo da penumbra, vindo como quem vem das trevas, trazendo consigo a escuridão dantesca das memórias. Embora fosse o pai de estatura baixa e franzino corpo curvilíneo, frágil como uma capa de livro bastante manuseado, sua sombra é grande, imensa e gigante, a encobrir todos os móveis e utensílios da sala e ao filho que ali estava. Um homem de passadas curtas e gestos tremulamente delicados, contrastando com o heroico guerreiro do menino de outrora.
Do cavaleiro antes andante, não ficou armaduras, escudos, elmos, lanças ou espadas; o que continua é somente a magra silhueta quase imobilizada que lembra o desenho em preto e branco que ilustrava as estórias de Cervantes. Talvez até não tivesse aquele livro, eram tantos os livros dele, porém o filho jamais o pedira para ver, como se assim ainda receasse algum atrasado carão pelo dia em que buliu escondidamente os segredos invioláveis da biblioteca do pai.
O velho homem conversa agora coisas do passado e o outro dele escuta lembranças fragmentadas como se do pai saíssem inúmeras vozes e fosse ele tantos vários. Sua voz, antes potente e hoje muito mais um sussurro, percorre uma vida: do tempo em que também fora menino, morando em engenho e tomando banho de rio, à época em que vivera um fugidio amor viajando pelos litorais do Nordeste. Conhecera praias, coqueiros e paixões. Ela se foi, como tudo ao homem um dia se vai. Ele igualmente.
O que ficou, o que sempre fica, foram as amargas e doces recordações saudosas dos momentos irrecuperáveis, e um filho este que de vez em quando o visita, até mesmo depois dos sonhos. As lembranças idosas de um homem idoso são feitas da mesma seda filamentosa e opaca que tece o embranquecer dos olhos nublados de cataratas e de tempo. Quantas aquisições anteriores não sucumbem ao pouco brilho que nos chega à mente, esta interioridade obscura que em parte se apresenta nas narrativas, e em outra parte se oculta, se disfarça e muitas vezes se deslembra. O pai que fala e se cansa com o que de si mesmo ouve não é um homem completo, é simplesmente a porção de um pedaço de fração de uma vida inteira.
Como se o que permaneceu fosse menos, repete ele as mesmas aventuras, glórias e dissabores de aposentadas eras em que é hoje então somente o único afastado sobrevivente. Algumas vezes o filho ouve com desatenta atenção, em outras se distrai enxergando através do emagrecido corpo de amontoados ossos e relatos, encoberto pela enrugada e manchada pele que ainda lhe sustenta o pouco tanto de suas tantas sobras, o pai e o seu menino que ambos foram muito antes do que agora. Sentado naquela quebradiça e encardida cadeira de balanço, é ele, assim como as sombras de todo o demais resto, uma mera noção rudimentar de uma melancólica e nostálgica aparência que ligeiramente parece uma esfinge a tutelar sepulcros e mortos.
Aquele homem que lhe fundara a própria história é ao filho a oralidade pulsante de sua ecoante inocência, pois rever o pai, mesmo tão velho, é redescobrir o que já não é mais descoberta com igual encanto e deslumbramento de uma criança curiosa. À hora de ir embora, beija-lhe com respeito a testa, último reduto de carinho e afeto com que reverencia sua infância ainda viva. Por possuir também as chaves, como de hábito, aguarda o pai recolher-se vagarosamente indo para dentro da casa e dos seus escuros. A poeira novamente levantada baila e por detrás dela segue um homem rumo ao seu quarto, arrastando com ele o silêncio de um garoto que de soslaio e sem acenos se despede do adulto aqui assombrado.


Joaquim Cesário de Mello

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