Logo ao
passar pela porta que o separa do mundo dos vivos, ficou parado um instante como
que suspenso em meio àquela atmosfera bolorenta impregnada de fungos mofando
móveis, objetos, quadros, livros e as outras coisas que preenchem e circundam
todo o espaço amplo da sala. Tudo é tão antigo e gasto que parece ser a casa um
enorme museu a conservar o que ainda resta dos últimos vestígios de uma remota
civilização desaparecida (passado tem o cheiro desagradável do envelhecimento
da história). Ali, onde mora o desusado tempo, reside também o pai e seus
consumidos e antiquados trastes, todos esquecidos por tudo que a eles da casa é
fora, não fosse o filho ocasionalmente revisitar o homem que lhe era mais o
guardião de sua distante meninice. Enquanto houver velhos (esses diminutos
adultos de ontem) a frequentar, haverá alguma infância a ser revisitada ainda
mais uma vez, de novo.
Infelizes
aqueles que não têm velhos, pois lhes sobram apenas a insonoridade monótona dos
álbuns de fotografias. Ao fechar a porta, cortando feito uma lâmina o domingo,
uma lufada de ar levanta e espalha a poeira antes sossegada em seu repouso
quase secular sobre a superfície rígida das coisas. No azular da sala mal
iluminada pelas frestas envidraçadas das janelas fechadas bailam granulados
fantasmas acordados pelo repentino vento – em breve retornarão a quietude das
planícies onde tomarão a forma inanimada das peças e dos objetos domésticos.
O filho
aguarda antes de dar o primeiro relutante passo através de tantos espectros
paternos, enquanto o vê, aos poucos, surgir do fundo da penumbra, vindo como
quem vem das trevas, trazendo consigo a escuridão dantesca das memórias. Embora
fosse o pai de estatura baixa e franzino corpo curvilíneo, frágil como uma capa
de livro bastante manuseado, sua sombra é grande, imensa e gigante, a encobrir
todos os móveis e utensílios da sala e ao filho que ali estava. Um homem de passadas
curtas e gestos tremulamente delicados, contrastando com o heroico guerreiro do
menino de outrora.
Do
cavaleiro antes andante, não ficou armaduras, escudos, elmos, lanças ou
espadas; o que continua é somente a magra silhueta quase imobilizada que lembra
o desenho em preto e branco que ilustrava as estórias de Cervantes. Talvez até
não tivesse aquele livro, eram tantos os livros dele, porém o filho jamais o
pedira para ver, como se assim ainda receasse algum atrasado carão pelo dia em
que buliu escondidamente os segredos invioláveis da biblioteca do pai.
O velho
homem conversa agora coisas do passado e o outro dele escuta lembranças
fragmentadas como se do pai saíssem inúmeras vozes e fosse ele tantos vários.
Sua voz, antes potente e hoje muito mais um sussurro, percorre uma vida: do
tempo em que também fora menino, morando em engenho e tomando banho de rio, à
época em que vivera um fugidio amor viajando pelos litorais do Nordeste.
Conhecera praias, coqueiros e paixões. Ela se foi, como tudo ao homem um dia se
vai. Ele igualmente.
O que
ficou, o que sempre fica, foram as amargas e doces recordações saudosas dos
momentos irrecuperáveis, e um filho este que de vez em quando o visita, até
mesmo depois dos sonhos. As lembranças idosas de um homem idoso são feitas da
mesma seda filamentosa e opaca que tece o embranquecer dos olhos nublados de
cataratas e de tempo. Quantas aquisições anteriores não sucumbem ao pouco
brilho que nos chega à mente, esta interioridade obscura que em parte se
apresenta nas narrativas, e em outra parte se oculta, se disfarça e muitas
vezes se deslembra. O pai que fala e se cansa com o que de si mesmo ouve não é
um homem completo, é simplesmente a porção de um pedaço de fração de uma vida
inteira.
Como se
o que permaneceu fosse menos, repete ele as mesmas aventuras, glórias e
dissabores de aposentadas eras em que é hoje então somente o único afastado
sobrevivente. Algumas vezes o filho ouve com desatenta atenção, em outras se
distrai enxergando através do emagrecido corpo de amontoados ossos e relatos,
encoberto pela enrugada e manchada pele que ainda lhe sustenta o pouco tanto de
suas tantas sobras, o pai e o seu menino que ambos foram muito antes do que
agora. Sentado naquela quebradiça e encardida cadeira de balanço, é ele, assim
como as sombras de todo o demais resto, uma mera noção rudimentar de uma
melancólica e nostálgica aparência que ligeiramente parece uma esfinge a
tutelar sepulcros e mortos.
Aquele
homem que lhe fundara a própria história é ao filho a oralidade pulsante de sua
ecoante inocência, pois rever o pai, mesmo tão velho, é redescobrir o que já
não é mais descoberta com igual encanto e deslumbramento de uma criança
curiosa. À hora de ir embora, beija-lhe com respeito a testa, último reduto de
carinho e afeto com que reverencia sua infância ainda viva. Por possuir também
as chaves, como de hábito, aguarda o pai recolher-se vagarosamente indo para
dentro da casa e dos seus escuros. A poeira novamente levantada baila e por
detrás dela segue um homem rumo ao seu quarto, arrastando com ele o silêncio de
um garoto que de soslaio e sem acenos se despede do adulto aqui assombrado.
Joaquim Cesário de Mello
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