sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

SOB O BRILHO DAS ESTRELAS MORTAS



Uma a uma as luzes vão se apagando. Como em um ritual diário as pessoas regressam aos seus lares, e em instantes todo o andar térreo do prédio transforma-se em um enorme cemitério de carros, não fosse apenas ela, sentada na rigidez inexpressiva de um banco de granito, e o vigia que se acomoda em seu costumeiro canto feito quem se despede após haver cumprido sua derradeira tarefa. Embora não faça frio, ao contrário, veste um largo e usado sobretudo maior que ele, com o qual se agasalha não do tempo e suas intempéries, mas dos mosquitos e das muriçocas que naquele adiantado da hora ziguezagueiam zumbindo seus sussurrantes gemidos de amores irritantes. Talvez por hábito ou necessidade da companhia, sustenta o vigia com o ombro esquerdo o rádio quebrado desde ontem, e encostando nele o ouvido fica a escutar coisa alguma.
A luminosidade advinda do quarto do apartamento 101 deixa à mostra a mulher sentada sobre si a espreitar seu restrito entorno de ausências, enquanto o vigia adormece lentamente embalado pelos mudos cânticos de suas memórias. A parca luz e o muito escuro dão a seu rosto e corpo um sombreado ar barroco, porém sem enfeites e adornos. Acaso alguém ali a visse haveria de ver e descobrir, por detrás daquela magra silhueta mais fina e mais transparente que sua própria sombra, toda a imensidão de sua mais profunda tristeza nordestina. Já o pouco que dela resta existir inexiste no adormecer tranqüilo e sem roncos do vigia ao canto. O silêncio do rádio não é maior que o silêncio da noite.
Uma a uma as luzes dos apartamentos vão também se apagando ao ritmo de cada recolhimento e desligamento. Não há vida nos dormentes apartamentos das pessoas que dormem, apenas sonhos - muito embora sejam os sonhos vidas invertidas. O contrário da vida, sabe bem ela, jamais é a morte posto que é extinção, mas os sonhos que em suas renúncias reedificam a vida em insólitos alicerces de fantasias. Daqui a pouco quando em sua tonalidade não houver mais qualquer brilho, o prédio inteiro será a negação do que antes era. No anti-prédio que se forma em sua logo noturna forma, sones e insones vaguearão a breve madrugada em existências diversas dos acordados. Contudo, ainda persiste e resiste a tímida luz do apartamento próximo, e a mulher que debaixo de todas as estrelas medita como se ouvisse rádios quebrados.
Em cima da última luz ilumina-lhe estrelas. Aprendera quando estudante menina que no céu cintilam estrelas tão remotas dela quanto ela da menina. Se as estrelas brilham, lembra e pensa, mesmo após sua distante morte, por que haveria de ser ela assim diferente? O que se é então é poeira luminosa do que antes de si ficou, enquanto hoje sofre o fenecimento das sobras luminosas, até o dia em que em seu lugar e naquele banco houver somente o escuro a encobrir dela qualquer registro ou lembrança, assim como agora. Não sabem todos do prédio, mesmo as vizinhas que como ela frequentam o térreo, que é noite de seu aniversário. Ano após ano ninguém lhe perguntou; era como se o seu gradual apagamento se fizesse sem velas ou datas, já que jamais lhe haveria a cronologia com que se conta a vida dos acordados. Esta mulher sem idades comemora ali seu deslembrado aniversário junto ao vigia que de próximo a ela tinha a mesma distância e indiferença das estrelas.
Acende o cigarro. Deixaria de fumar, quem sabe, se tivesse a quem prometer. O primeiro queimar da brasa avermelha a noite. Agrada-lhe a ideia de que a anos-luz dali, um dia, outros olhos olharão o céu no lado oposto e fitarão o brilho de sua recente chama, a que lá também chamarão de estrela. Quando o escuro nela se fizer e não mais existir o vigia, o banco, seus mistério, até mesmo o prédio, e quando não mais houver sequer as cinzas das cinzas de seu cigarro, ainda estará ela alumiando as afastadas noites solitárias de alguém. Aquela já consumida repentina chama é sua única doação, transformada após séculos na rápida estrela de sua vida inteira.
A lâmpada do quarto do 101 se apaga. Ela também apaga com o pé o que do cigarro sobrou, queimando-lhe a sombra desaparecida no desaparecimento da luz. O vigia, imóvel, permanece inerte encostado ao pilotis com a insonoridade do seu rádio. Será ele cedo o primeiro a acordar? Levanta-se a mulher sem brilhos e sem idades. Em seu bolso não traz mais cigarros - amanhã novamente os comprará como novamente sentará no banco de granito a temer despertar de seus sonhos de estrelas. Fecha a porta sem barulhos para não assustar o dormente, deixando atrás de si o esquecimento e o silêncio.

Joaquim Cesário de Mello

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