Estamos
acostumados a nos lembrar de Alice do País das Maravilhas, porém nem só de
Alice meninas e ninfetas a atrair olhares lascivos de pedófilos e nabokovianos
é feito o mundo das letras e das artes. Estou aqui para apresentar uma outra
Alice, uma Alice de que é feito a história do filme de Wim Wenders “Alice nas
Cidades”. Mergulhemos, pois, no tempo e retornemos ao ano de 1974 quando foi
feito o filme.
O
referido filme se baseia nas primeiras viagens de Wenders aos Estados Unidos e
nele temos o personagem de Philip Winter que vai à América em busca de
reportagens e de escrever um livro. Lá ele conhece uma mulher e sua filha que
tentam, assim como ele, voltar à Alemanha, porém o aeroporto está fechado para
decolagens. Com elas ele divide um quarto de hotel, mas ao acordar dia seguinte
ele se depara com a ausência da mãe que deixa com ele sua jovem filha Alice.
Trata-se
de um filme sobre a paternidade. Não a paternidade biológica, mas uma
paternidade iniciática onde o personagem de Philip sofrerá uma transformação.
Dois destinos destinados a serem um só. É Alice quem, aos poucos, ensina aquele
homem de meia-idade e em crise existencial a essência transmutativa de sua
angústia. A angústia, a depressão e o medo de ter medo vão se transformando em
esperança e ação. Embora a Alice do filme tenha 9 anos, ela parece mais madura
do que seu acompanhante forçado. A maturidade de Philip se inicia ali, quando
finalmente tem que assumir as responsabilidades típicas de sua faixa etária.
Alice
e Philip, em suas solidões a dois, vão a Europa em busca da avó da menina. Avó
que é antes de tudo uma metáfora da busca, a busca pelo sentido da vida. Diz
Wenders: “encontrei com Alice nas Cidades
a minha própria caligrafia no cinema”. O filme - ao estilo ” road movie” -
envereda por duas viagens: a viagem das estradas e a viagem ao interior da
alma.
Philip
é uma criança aprisionada em um corpo adulto (quem de nós também não é?). Às
vezes precisamos encontrar a infância de uma criança para nos livrar de nossa
própria. A juventude menina ensina a maturidade recalcitrante a ser adulta. Alice
parece estar sempre dizendo que a o adulto não está depois da curva da esquina
do futuro, mas sim no presente, principalmente daqueles que olham o contorno do
mundo com olhos de mais de trinta.
Os
personagens de Wenders perambulam pela vida algo solitários, algo desolados. Em
sua variada gama de significados, e em meio ao lirismo das imagens em preto e
branco e ao concreto das edificações urbanas, o nomadismo de ambos se enlaçam.
Surge a promessa de um novo amanhã, modificado pelo acaso dos encontros,
encontros estes que se iniciam sem fim pré-determinado. Como diz Gilles
Deleuze, “nunca é o início ou fim que é
interessante; o início e o fim são pontos. O interessante é o meio”.
E
o que é um pai em termos psíquicos? Será aquele em que uma criança necessita
para poder crescer? Um interdito vital que dessimbiotiza a relação primeva
entre mãe e filho? A recusa ao gozo narcísico com a fusão do psiquismo infante
e seu objeto inaugural (mãe) se possibilita graças a presença de uma função
paterna que em troca do imaginário paraíso perdido oferece ao filho(a) toda a
extensão do mundo. É somente fora do casulo simbiótico que uma mente pode se
desenvolver e uma pessoa pode emocionalmente crescer.
Filosófico
e psicológico “Alice nas Cidades” é o filme de Wenders mais emotivo e emocional
de todo o conjunto de sua obra até então. Impregnado de metalinguagens o filme parece
querer descortinar o que procura o ser humano em sua viagem pela vida. Procura
novos objetos depois que o objeto materno deixou de ser exclusivamente seu. Os
infindáveis e infundáveis objetos do desejo. Obscuros objetos do desejo. O
mundo pode ser até um mundo em convulsão, mas ele está sempre a nossa frente se
oferecendo aos olhos para ser descoberto.
Alice
anseia chegar a casa de sua avó que ela mal lembra onde mora. Possui apenas um
velho retrato. Decididamente o filme é dedicado à memória, uma viagem pelas
lembranças através dos olhares. Dois olhares que se entrecruzam: um já cansado
e desiludido e um outro ainda puro e virginal. A junção dos dois expande o
universo e o horizonte de ambos. E é a jovialidade menina de Alice que guia
Philip pelo mundo, ao mesmo tempo em que este propicia a ela a olhar para
frente através de seu passado. Um filme de olhares, como de olhares são feitos
a alma humana.
Realmente
nem toda Alice atravessa espelhos. Algumas são pra poucos o próprio espelho.
Joaquim Cesário de
Mello
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