terça-feira, 14 de janeiro de 2014

LEWIS CARROLL NÃO MORA AQUI: REFLEXÕES NADA INFANTIS SOBRE UMA OUTRA ALICE







Estamos acostumados a nos lembrar de Alice do País das Maravilhas, porém nem só de Alice meninas e ninfetas a atrair olhares lascivos de pedófilos e nabokovianos é feito o mundo das letras e das artes. Estou aqui para apresentar uma outra Alice, uma Alice de que é feito a história do filme de Wim Wenders “Alice nas Cidades”. Mergulhemos, pois, no tempo e retornemos ao ano de 1974 quando foi feito o filme.
O referido filme se baseia nas primeiras viagens de Wenders aos Estados Unidos e nele temos o personagem de Philip Winter que vai à América em busca de reportagens e de escrever um livro. Lá ele conhece uma mulher e sua filha que tentam, assim como ele, voltar à Alemanha, porém o aeroporto está fechado para decolagens. Com elas ele divide um quarto de hotel, mas ao acordar dia seguinte ele se depara com a ausência da mãe que deixa com ele sua jovem filha Alice.

Trata-se de um filme sobre a paternidade. Não a paternidade biológica, mas uma paternidade iniciática onde o personagem de Philip sofrerá uma transformação. Dois destinos destinados a serem um só. É Alice quem, aos poucos, ensina aquele homem de meia-idade e em crise existencial a essência transmutativa de sua angústia. A angústia, a depressão e o medo de ter medo vão se transformando em esperança e ação. Embora a Alice do filme tenha 9 anos, ela parece mais madura do que seu acompanhante forçado. A maturidade de Philip se inicia ali, quando finalmente tem que assumir as responsabilidades típicas de sua faixa etária.

 Alice e Philip, em suas solidões a dois, vão a Europa em busca da avó da menina. Avó que é antes de tudo uma metáfora da busca, a busca pelo sentido da vida. Diz Wenders: “encontrei com Alice nas Cidades a minha própria caligrafia no cinema”. O filme - ao estilo ” road movie” - envereda por duas viagens: a viagem das estradas e a viagem ao interior da alma.

Philip é uma criança aprisionada em um corpo adulto (quem de nós também não é?). Às vezes precisamos encontrar a infância de uma criança para nos livrar de nossa própria. A juventude menina ensina a maturidade recalcitrante a ser adulta. Alice parece estar sempre dizendo que a o adulto não está depois da curva da esquina do futuro, mas sim no presente, principalmente daqueles que olham o contorno do mundo com olhos de mais de trinta.

Os personagens de Wenders perambulam pela vida algo solitários, algo desolados. Em sua variada gama de significados, e em meio ao lirismo das imagens em preto e branco e ao concreto das edificações urbanas, o nomadismo de ambos se enlaçam. Surge a promessa de um novo amanhã, modificado pelo acaso dos encontros, encontros estes que se iniciam sem fim pré-determinado. Como diz Gilles Deleuze, “nunca é o início ou fim que é interessante; o início e o fim são pontos. O interessante é o meio”.

E o que é um pai em termos psíquicos? Será aquele em que uma criança necessita para poder crescer? Um interdito vital que dessimbiotiza a relação primeva entre mãe e filho? A recusa ao gozo narcísico com a fusão do psiquismo infante e seu objeto inaugural (mãe) se possibilita graças a presença de uma função paterna que em troca do imaginário paraíso perdido oferece ao filho(a) toda a extensão do mundo. É somente fora do casulo simbiótico que uma mente pode se desenvolver e uma pessoa pode emocionalmente crescer.

Filosófico e psicológico “Alice nas Cidades” é o filme de Wenders mais emotivo e emocional de todo o conjunto de sua obra até então. Impregnado de metalinguagens o filme parece querer descortinar o que procura o ser humano em sua viagem pela vida. Procura novos objetos depois que o objeto materno deixou de ser exclusivamente seu. Os infindáveis e infundáveis objetos do desejo. Obscuros objetos do desejo. O mundo pode ser até um mundo em convulsão, mas ele está sempre a nossa frente se oferecendo aos olhos para ser descoberto.
Alice anseia chegar a casa de sua avó que ela mal lembra onde mora. Possui apenas um velho retrato. Decididamente o filme é dedicado à memória, uma viagem pelas lembranças através dos olhares. Dois olhares que se entrecruzam: um já cansado e desiludido e um outro ainda puro e virginal. A junção dos dois expande o universo e o horizonte de ambos. E é a jovialidade menina de Alice que guia Philip pelo mundo, ao mesmo tempo em que este propicia a ela a olhar para frente através de seu passado. Um filme de olhares, como de olhares são feitos a alma humana.
Realmente nem toda Alice atravessa espelhos. Algumas são pra poucos o próprio espelho.

Joaquim Cesário de Mello

                

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